Na madrugada desta quarta-feira (29), residentes do Complexo da Penha, localizado na Zona Norte da capital fluminense, transportaram cerca de 55 cadáveres para a Praça São Lucas, situada na Estrada José Rucas uma das vias mais movimentadas da localidade. A iniciativa ocorreu no dia seguinte à maior ofensiva policial já registrada no estado, que deixou um rastro de violência inédito na região.
O balanço divulgado pelo governo estadual na terça-feira (28) registrava 60 indivíduos identificados como criminosos abatidos na incursão conjunta nos complexos da Penha e do Alemão, além da perda de quatro agentes de segurança. De acordo com declarações do secretário de Polícia Militar, coronel Marcelo de Menezes Nogueira, os restos mortais depositados na praça inicialmente não integram essa estatística oficial. Autoridades planejam perícias para verificar possíveis ligações entre esses óbitos e os eventos da operação. Caso sejam confirmados como adicionais, o número total de vítimas poderia exceder a marca de 100, elevando o que já é considerado o confronto mais mortal da história recente do Rio, superando episódios como o massacre do Jacarezinho (28 mortes em 2021) e o da Vila Cruzeiro (24 em 2022), ambos sob a gestão atual.
O g1 verificou que os corpos foram resgatados principalmente da mata densa na região da Vacaria, parte da Serra da Misericórdia, epicentro dos embates entre equipes policiais e membros do tráfico de drogas. Testemunhas locais relataram a existência de mais cadáveres em pontos elevados do morro, inacessíveis devido à topografia acidentada e à persistência de tiroteios isolados. O ativista comunitário Raull Santiago, que auxiliou na remoção dos corpos da vegetação, descreveu a cena como chocante: “Em 36 anos de favela, passando por várias operações e chacinas, eu nunca vi nada parecido com o que estou vendo hoje. É algo novo. Brutal e violento num nível desconhecido”.
A motivação para o deslocamento dos corpos, conforme fontes investigadas pelo g1, visava agilizar o processo de identificação por parte de familiares e amigos, em meio ao caos logístico gerado pela ação. A Polícia Civil comunicou que, a partir das 8h, o procedimento formal de reconhecimento será realizado no edifício do Detran, adjacente ao Instituto Médico-Legal (IML), com entrada limitada à corporação e ao Ministério Público para os exames periciais essenciais. Outros procedimentos de necropsia, alheios à operação, serão transferidos para o IML de Niterói, visando otimizar os recursos na capital.
Mais cedo, em um episódio de desespero, seis corpos foram conduzidos por moradores em uma Kombi até o Hospital Estadual Getúlio Vargas. O automóvel chegou ao local em velocidade elevada e partiu logo em seguida, sem maiores detalhes sobre o atendimento imediato.
A operação, batizada de Contenção, mobilizou cerca de 2.500 profissionais das Polícias Civil e Militar para combater a expansão do Comando Vermelho (CV), facção dominante na área. Até o fim da terça-feira, 81 prisões foram efetuadas, com a apreensão de 72 fuzis e cumprimento de 69 mandados em 180 endereços, abrangendo 26 comunidades nos dois complexos. Entre as vítimas fatais confirmadas, destacam-se os quatro policiais: os civis Marcus Vinícius Cardoso (o Máskara, 51 anos) e Rodrigo Velloso Cabral (34), atingidos na incursão inicial na Penha; e os militares Cleiton Serafim Gonçalves (42, 16 anos de serviço) e Heber Carvalho da Fonseca (39, 14 anos na corporação), ambos sargentos do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), mortos durante o avanço no Alemão. Além disso, seis feridos foram registrados, incluindo três civis – como uma mulher baleada de raspão em uma academia, já liberada e um delegado da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), Bernardo Leal, atingido na perna mas fora de perigo. Dois suspeitos baleados permanecem sob custódia no Hospital da Penha.
O alvo principal da ofensiva era Edgar Alves de Andrade, conhecido como Doca, liderança do CV na Penha e em comunidades vizinhas como Gardênia Azul, César Maia e Juramento. Embora ele permaneça foragido, a ação desarticulou redes de tráfico de entorpecentes, comércio de armas e "tribunais do tráfico" na mata da Vacaria, onde os tiroteios se prolongaram por mais de 12 horas. Relatos indicam que o CV retaliou com drones e bloqueios de ruas, paralisando o tráfego na região.
A repercussão nacional e internacional foi imediata. O diretor da Human Rights Watch no Brasil, César Muñoz, qualificou o episódio como uma "enorme tragédia" e cobrou do Ministério Público investigações detalhadas sobre cada óbito, abrangendo civis e agentes. No Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Alexandre de Moraes concedeu 24 horas para que a Procuradoria-Geral da República (PGR) responda a um pedido do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), exigindo do governador Cláudio Castro (PL) relatórios completos da operação, justificativas formais e dados sobre assistência às vítimas e responsabilização de envolvidos. A determinação integra a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) das Favelas, que impõe protocolos para mitigar a letalidade policial, como uso de câmeras corporais e presença de ambulâncias itens questionados no ofício apresentado pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Defensoria Pública da União (DPU).
A Zona Norte do Rio acordou com ruas esvaziadas, pontos de ônibus desertos e reforço ostensivo de viaturas em 12 pontos ao longo de 13 km, incluindo a Linha Amarela e a Avenida Braz de Pina. Moradores expressam luto coletivo e demandam transparência, enquanto o debate sobre políticas de segurança pública ganha contornos urgentes em um estado marcado por ciclos de violência.
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