Origens e expansão do Comando Vermelho pelo país

A ação policial mais sangrenta do Rio visa barrar o domínio da facção mais duradoura do estado
Por: Brado Jornal 29.out.2025 às 10h12
Origens e expansão do Comando Vermelho pelo país
Foto: Getty Images via BBC
O Rio de Janeiro mergulhou em um cenário de confronto armado na tarde de terça-feira (28/10), quando o saldo de vítimas na Operação Contenção lançada pelas Polícias Civil e Militar saltou de 24 para 64 óbitos, conforme relatos iniciais da autoridade estadual. Em seguida, relataram-se incidentes adicionais de disparos e obstruções de tráfego em diversos bairros: tumulto na Tijuca, veículos pesados parando o fluxo na Rua do Riachuelo, no coração da cidade.

O tumulto inicial, concentrado nos complexos da Penha e do Alemão, na região norte, irradiou-se por toda a metrópole. Comércios anteciparam o encerramento das atividades, estações de metrô transbordaram de gente e, em paradas de coletivo, transeuntes trocavam votos de boa sorte para conseguir regressar às residências em meio ao impasse.

Essa incursão, a de maior mortandade registrada na capital fluminense, procurava executar cerca de 100 ordens de detenção e conter o crescimento geográfico do Comando Vermelho, a quadrilha de mais longa existência no território estadual. Até o momento, as forças policiais registram mais de 60 falecimentos, incluindo quatro agentes da lei, além de mais de 100 armamentos pesados confiscados e 81 indivíduos capturados. Cerca de 2.500 profissionais de segurança do Rio foram alocados para a empreitada, que continua ativa e pode se estender até dezembro de 2025, com possibilidade de prorrogação.

Nos anos recentes, o grupo reacendeu sua influência territorial. De acordo com o Mapa dos Grupos Armados – iniciativa conjunta do Instituto Fogo Cruzado, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), o Comando Vermelho destacou-se como a única rede delitiva a ganhar terreno no estado, ao passo que concorrentes recuaram. No período de 2022 a 2023, ampliou em 8,4% suas zonas de influência e reconquistou o posto de liderança, antes nas mãos das milícias. Assim, assumiu 51,9% dos domínios ocupados por bandos organizados na área metropolitana do Rio.

De prisões à dominação nacional

Há quase cinco décadas incluindo o regime militar como pano de fundo –, o surgimento do Comando Vermelho distancia-se do episódio de extrema violência vivido agora na capital carioca. Por volta da década de 1970, na Penitenciária Cândido Mendes, em Ilha Grande (a mais de 100 km do centro do Rio), ativistas detidos por motivos políticos dividiram alas com condenados por delitos rotineiros.

Antes disso, os reclusos de maior tempo de pena em sua maioria por arrombamentos a instituições financeiras careciam de noções básicas sobre direitos. Foi a proximidade com os opositores ao regime geralmente de origem familiar abastada que os ensinou a pleitear melhorias nas condições de detenção, atuando como mediadores.

"O Comando Vermelho nasce no interior dos presídios, no coração do Estado. Na convivência com as pessoas presas pela Lei de Segurança Nacional. Inicialmente, era chamado de Falange da Segurança Nacional. Depois vira Falange Vermelha. E, anos depois, a imprensa vai nomear como Comando Vermelho (CV)", explica a socióloga Carolina Grillo, da UFF.

"Não é que os presos políticos de esquerda organizaram. Ambos tinham uma coisa em comum: assalto a banco. Esses crimes eram considerados de segurança nacional porque os grupos de resistência à ditadura assaltavam bancos para financiar a resistência política. Então, passou a ter um status especial na legislação, o que fazia com que os assaltantes convencionais de banco fossem para Ilha Grande", complementa Jacqueline Muniz, do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos do Departamento de Segurança Pública.

Entre os criadores chave estava William da Silva Lima, conhecido como Professor. Em sua obra 400 contra 1 uma história do Comando Vermelho, ele descreve a formação do coletivo para disciplinar o ambiente prisional, estabelecendo normas de interação coletiva.

Com a promulgação da Lei da Anistia em 1979, os militantes foram libertados, mas os demais permaneceram. Sem esses aliados, o clamor por equidade social no cárcere enfraqueceu.Os remanescentes da Falange Vermelha se reestruturaram de forma alternativa. Em 1980, orquestraram evasões em massa: mais de cem internos fugiram, gerando alarme entre o setor bancário. Os recursos obtidos em investidas financeiras foram redirecionados ao comércio de cocaína.

"Naquele momento, na década de 1980, a Colômbia passa a ser produtora de cocaína. E isso causa mudanças nas rotas internacionais do tráfico. O Brasil vira um entreposto na rota para a Europa, como é até hoje", diz Grillo.

Para salvaguardar o entorpecente contra incursões de rivais, os integrantes do CV armaram-se.

"Não tem como você ir até a delegacia e fazer um boletim porque sua droga foi roubada. A possibilidade de você garantir a posse, diferente da propriedade privada, que eu tenho escritura, nota fiscal, CNPJ, o crime requer armamento para garantir acordos, garantir a posse de sua economia ilícita", afirma Muniz.

"Havia dissidências e rivalidades, disputas de territórios. E quem passa a lucrar são os mercadores de armas e policiais que também passaram a fornecer armas. Isso criou na própria polícia uma demanda por se armar mais fortemente para fazer frente a um tráfico armado", completa Grillo.

Durante os anos 1990, os patamares de letalidade urbana alcançaram recordes negativos no Rio, com 64,8 assassinatos por 100 mil habitantes em 1994 – contra 24,3 atualmente no estado inteiro.

Para minar o CV, as autoridades dispersaram seus comandantes por diversas unidades prisionais. O resultado contrariou as expectativas: a doutrina se propagou a outros internos, fortalecendo a facção como a força delitiva predominante na cidade.

A partir daí, o alcance do CV transcendeu as fronteiras do Rio.

"O Comando Vermelho funciona como franquias. São vários donos de morro. Nenhum manda mais nem menos, é uma sociedade. Foi isso que permitiu ao Comando Vermelho crescer nacionalmente. Essa ideologia de facção permitiu que chefes de outros estados, inicialmente, virassem parceiros comerciais em suas facções", diz o jornalista Rafael Soares, autor do livro *Milicianos: Como agentes formados para combater o crime passaram a matar a serviço dele.

Nos últimos seis anos, a presença se estendeu a 25 unidades da federação, partindo de apenas 10 anteriormente. "Um marco histórico da nacionalização do PCC [Primeiro Comando da Capital] e do CV foram os presídios federais. Essa 'brilhante' ideia do governo federal de transferirem as grandes lideranças do PCC e do CV para presídios federais em outros Estados", critica Grillo.

O alastramento demandou aportes adicionais. O escoamento de entorpecentes permanece pivotal, especialmente com controle sobre fronteiras como a amazônica, onde CV e PCC estendem caminhos logísticos. Contudo, os ganhos diversificaram-se: em 2022, o crime organizado faturou R$ 146,8 bilhões em ilícitos como mineração aurífera ilegal, adulteração de derivados de petróleo, falsificação de licores e cigarros, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A obtenção de equipamentos bélicos evoluiu. Antes, dependia de contrabando paraguaio ou desvio de estoques oficiais. Atualmente, há capacidade para fabricação caseira em volume industrial.

"São fábricas com equipamentos de última geração, máquinas caríssimas, que custam até meio milhão de reais. São impressoras 3D, que trabalham com metal e entregam peças prontas. Por ser uma máquina industrial, produzem em larga escala", explica Bruno Langeani, consultor sênior do Instituto Sou da Paz.

Em agosto, agentes federais desmantelaram uma unidade clandestina em Rio das Pedras (zona oeste do Rio), com quatro impressoras 3D entre os itens retidos. Além disso, na terça-feira, o CV exibiu sua sofisticação ao empregar drones para soltar artefatos explosivos nos embates.

Langeani ressalta a acessibilidade de componentes, impulsionada pela desregulamentação armamentista no período do ex-presidente Jair Bolsonaro. "Houve um incentivo econômico para fábricas de empunhadura, por exemplo. Antes só vendiam, praticamente, para a polícia e as Forças Armadas. Então, não fazia sentido ter uma uma indústria dessas no Brasil. Mas depois do Bolsonaro, milhares de civis compraram fuzis. E essas pessoas, às vezes, querem personalizar, trocar a coronha ou empunhadura", diz.

Entre 2018 e 2022, os cadastros de Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs) explodiram, com armas legais sendo cooptadas pelo submundo. Pelo Instituto Sou da Paz, no Sudeste, 50% das capturas envolvem itens desviados, 30% montados artesanalmente e 20% oriundos de CACs.

Atualizações da operação: prisões chave e reações

A Operação Contenção, parte de uma estratégia contínua do governo fluminense contra o CV, resultou na captura de Edgar Alves de Andrade (Doca ou Urso) e Thiago do Nascimento Mendes (Belão do Quintungo), líderes apontados como centrais na estrutura do grupo no Rio – Doca é ligado ao assassinato equivocado de três médicos em 2023. O balanço preliminar inclui 64 óbitos (quatro policiais, como os sargentos Cleiton Serafim Gonçalves e Heber Carvalho da Fonseca, do BOPE), 81 detidos e 100 fuzis retidos, superando o massacre do Jacarezinho (2021, 28 mortos) como o mais mortífero da história local. Em retaliação, o CV bloqueou vias com 71 ônibus e caminhões, afetando linhas como a Avenida Brasil e a Linha Vermelha, paralisando serviços e fechando 45 escolas e cinco postos de saúde. O governador Cláudio Castro (PL) acusou o Planalto de recusar blindados e apoio, apesar de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) vigente desde 2023; o ministro Ricardo Lewandowski rebateu que pedidos foram atendidos e defendeu a PEC da Segurança Pública. O Ministério Público Federal (MPF) exige esclarecimentos de Castro sobre o excesso de letalidade, enquanto a ONU condena o padrão de violência em comunidades vulneráveis. Todas as forças policiais do estado estão em alerta máximo.

A letalidade persistente das incursões

Estatísticas indicam que ações policiais de alto custo e intensidade no Rio falham em produzir avanços duradouros. Paradoxalmente, enquanto o CV consolida posições, são suas áreas de influência as mais visadas pelas forças do ordem e onde os choques se intensificam.

Pelo Mapa dos Grupos Armados, a probabilidade de tiroteios em redutos do narcotráfico é 3,71 vezes superior aos das milícias. Em 60% dos focos de violência, há envolvimento estatal.

"Não consigo ver a relação direta do governo atuando para desmobilizar nem a milícia, nem o tráfico. A gente não vê o retrocesso de uma área que, uma vez ocupada, volta para o Estado. O que temos visto é eles dominando um pouquinho mais de espaço, ou disputando entre eles, mas o governo conseguindo dizer: 'Aqui não era seguro, voltou a ser', isso não acontece. A gente só vê essa piora e essa troca de comando mesmo o Estado não consegue retomar o controle de áreas dominadas há décadas", finaliza Terine Husek, gerente de pesquisa do Instituto Fogo Cruzado.


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