Baiana rejeitada por cotas na UFF conquista vaga em Medicina na UFOB: 'Deus fez tudo certinho'

Superação após trauma judicial e aprovação na nona chamada
Por: Brado Jornal 31.out.2025 às 11h14
Baiana rejeitada por cotas na UFF conquista vaga em Medicina na UFOB: 'Deus fez tudo certinho'
Foto: Arquivo pessoal
Samille Ornelas, de 31 anos, natural da Bahia, superou a perda de uma vaga no curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF) por decisão de comitês de heteroidentificação e agora estuda na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), também via cotas. Aprovada pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu) na modalidade para pretos e pardos com renda familiar per capita inferior a 1,5 salário mínimo, ela foi considerada inapta pela UFF por não apresentar "características fenotípicas" de parda.

A reviravolta ocorreu em setembro de 2025, quando Samille foi convocada na nona lista de aprovados da UFOB. “Eu nem lembrava mais que tinha me inscrito lá no começo do ano, mas passei agora, na 9ª lista de aprovados”, relata. Ao receber a ligação da universidade, desconfiou de golpe: “Toda aquela história me fez acumular traumas. Em 2024, eu ainda fui vítima de estelionatários que se passaram por advogados para supostamente me ajudar no caso da UFF. Perdi R$ 5,5 mil. Mas, dessa vez, deu certo: meu nome estava na convocação.”

Na UFOB, o processo de verificação transcorreu sem problemas. Samille enviou documentos comprovando renda e passou pela avaliação de banca de heteroidentificação, que reconheceu sua autodeclaração como parda. “Quando alguém fala a palavra ‘identificação’ ou entra em assunto de banca, eu imediatamente tenho crise de ansiedade, mesmo agora. Minhas mãos suam muito”, admite. “Para você ter uma ideia, quando chega qualquer e-mail da universidade, pode até ser o cardápio da semana, já fico nervosa, com medo que algo dê errado. Ainda preciso superar esse trauma, mas é questão de tempo, se Deus quiser.”

O caso na UFF começou em 2024, quando Samille gravou um vídeo curto mostrando o rosto, conforme exigido pelo edital. Duas comissões independentes julgaram-na inapta. Ela recorreu com novo vídeo, fotos de diferentes fases da vida e comprovante de graduação anterior em biomedicina pelo Prouni na mesma modalidade de cotas. A resposta foi a mesma: ausência de traços fenotípicos de parda.

Na Justiça, obteve liminar em janeiro de 2025 permitindo matrícula. “Eu morava em Belo Horizonte. Soube na sexta à noite que poderia ir para a aula de segunda-feira. Pedi demissão no meu trabalho no sábado, peguei um ônibus às 22h e fui para o Rio de Janeiro. Vim na correria, três dias depois de perder meu pai”, recorda. Após um semestre, com duas provas restantes para concluir o primeiro período, a liminar foi cassada. “Fui jantar no refeitório da universidade com meus colegas, depois de um dia inteiro de aula. Deu ‘acesso negado’ no QR code. Achei que fosse algum problema do aplicativo, mas aí, entrando no sistema, vi que todos os meus dados tinham sido apagados. Minhas notas, minha grade horária, tudo tinha sumido, como se eu não fosse ninguém. Deixaram apenas um aviso no sistema: ‘matrícula cancelada por liminar cassada’. Meu mundo caiu. Minha vida toda está assim, bagunçada, destruída, baseada em um vídeo de 17 segundos. Ninguém me viu para dizer se sou parda: nem a banca, nem a Justiça.”

O processo na UFF segue aguardando julgamento. “A universidade não teve nenhuma abertura para o diálogo, e o processo segue aguardando julgamento na Justiça. Mas Deus fez tudo certinho”, afirma Samille.

Impactos emocionais e físicos

Durante o litígio, Samille enfrentou depressão profunda, estresse pós-traumático, crises de ansiedade, queda de cabelo, hematomas e descamações na pele. “Eu só pedia a Deus, me tire do lugar onde estou”, lembra. Só voltou a se olhar no espelho ao se arrumar para fotos na UFOB, inclusive fazendo babyliss. “Both of them were so sweet and so kind and took the time to comfort me until I started to feel better” espera, erro, ignorar.

Apoio familiar e de amigos foi essencial. Um amigo transferido para Barreiras (BA), onde fica a UFOB, ofereceu moradia conjunta. A família organizou viagem em etapas — Rio de Janeiro a Belo Horizonte, depois Brasília e finalmente Barreiras para que ela chegasse ao primeiro dia de aula.

Samille perdeu a avó e o pai no último ano; nenhum viu-a de jaleco. Agora dedica-se ao avô, falecido por infarto sem diagnóstico adequado em região remota. “Um dos meus propósitos dentro da medicina é não deixar morrer quem teve acesso limitado a serviços de saúde.” Na UFOB, participará de visitas a posto de saúde rural e aldeia indígena. “Aqui na UFOB, eu vou lidar com quem também mora longe de centros urbanos. Nesta semana, vamos visitar um posto de saúde rural e uma aldeia indígena. Estou muito animada.”

Como funcionam os comitês de heteroidentificação

Universidades públicas definem procedimentos para verificar cotas raciais. Critério principal é fenotípico aparência física, não ancestralidade. Avaliação preferencialmente presencial, filmada; em impasse, prevalece autodeclaração.

No Sisu da UFF, exigia-se vídeo à distância com fundo branco, iluminação adequada, declaração verbal (“Eu me autodeclaro PARDO”) e filmagem de perfis direito e esquerdo.O Supremo Tribunal Federal considerou comitês legítimos em 2012. Portaria normativa nº 4 (2018, atualizada 2023) determina uso exclusivo de critério fenotípico em concursos públicos.Para contestar, Samille contratou antropólogo que analisou lábios, nariz e crânio, concluindo traços negroide. O laudo não alterou a decisão judicial.

Posição da UFF

Em nota oficial de agosto de 2025: “A Universidade Federal Fluminense (UFF) esclarece que o caso envolvendo a candidata Samille Ornelas está atualmente sob a esfera judicial, e que a instituição cumpre integralmente as decisões emanadas pelo Poder Judiciário, sem interferência ou autonomia decisória neste estágio do processo.

Ressalta-se que a candidata foi considerada inapta por duas comissões independentes e distintas, compostas por servidores e estudantes que recebem, regularmente, formação conduzida por especialistas na área dos estudos étnico-raciais. Portanto, são membros capacitados para atuar nas avaliações, com formação específica em letramento racial.

A UFF acredita firmemente na relevância das políticas de reserva de vagas para ingresso no ensino superior e tem atuado de forma contínua em sua implementação e aperfeiçoamento, com base nos princípios da justiça, diversidade e compromisso com a função social da universidade pública. A instituição busca assegurar, com máxima responsabilidade, que seus processos seletivos sejam conduzidos de forma transparente, isonômica e em conformidade com a legislação vigente.”

Procurada novamente em 30 de outubro de 2025, a UFF não respondeu até a última atualização.


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