De acordo com informações do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), vinculado ao Ministério da Saúde, o Brasil contabilizou 560 notificações de envenenamentos intencionais no primeiro semestre de 2025, o que equivale ao recorde histórico para esse intervalo desde o início dos registros em 2007. Esse total reflete um crescimento de 9% ante os 513 episódios reportados nos meses iniciais de 2024. Desses incidentes, 15 resultaram em óbitos, superando já a média anual de anos anteriores, como as 19 mortes registradas ao longo de todo o ano passado.
Os dados, ainda preliminares e sujeitos a ajustes, são compilados por equipes médicas de serviços públicos e particulares, que obrigatoriamente detalham se o episódio se enquadra em contexto de "violência/homicídio" e se houve falecimento. Incidentes recentes, como os surtos de intoxicação por metanol em bebidas falsificadas em setembro, permanecem fora da contagem atual do Sinan, o que pode elevar ainda mais os números finais.
Entre os desfechos observados até agora, nove sobreviventes lidam com sequelas permanentes, enquanto 407 indivíduos se recuperaram sem complicações graves. Os demais casos envolvem mortes por motivos não esclarecidos ou evoluções não documentadas. No panorama histórico, o país acumula 11.630 envenenamentos criminosos desde 2007, com os registros quase duplicando na última década: de 577 em 2015 para 1.141 em 2024. Já as fatalidades, embora estáveis em termos absolutos 18 em 2015 e 19 em 2024, representam uma proporção menor frente ao volume crescente de ataques, totalizando 220 vidas perdidas no período.
Raticidas, como o conhecido "chumbinho" (aldicarbe), figuram como o segundo agente mais comum nesses crimes, com 38 ocorrências no semestre, atrás apenas dos medicamentos, responsáveis por 300 casos. Essa preferência por venenos acessíveis reflete a facilidade de aquisição, frequentemente via comércio informal ou desvios de estoques agrícolas, conforme apontam peritos criminais. Em 2025, o Brasil já enfrenta mais de 7 mil intoxicações gerais, incluindo acidentais, com São Paulo registrando sozinha cerca de 7 mil delas nos primeiros seis meses, e 56 mortes associadas.
A toxicologista Juliana Sartorelo, coordenadora do comitê de toxicologia da Associação Brasileira de Medicina de Emergência (Abramede), atribui o avanço a múltiplos fatores, incluindo instabilidades sociais que fomentam comportamentos disruptivos e a pouca regulação sobre tóxicos. “Não há uma resposta única para explicar o aumento dos envenenamentos criminosos. Mas ela levanta algumas hipóteses, como fatores sociais, que causam instabilidades comportamentais, e a facilidade de acesso às substâncias tóxicas”, observa. Para mitigar o problema, ela enfatiza a necessidade de reforçar a vigilância e criar mecanismos de rastreio na venda de produtos perigosos.
“Além disso, [é preciso] focar em ações preventivas, estratégias de acolhimento e políticas públicas voltadas para a saúde mental da população”, defende Sartorelo. A especialista também ressalta a importância de antídotos disponíveis em unidades de saúde e da capacitação de profissionais para detecção precoce, já que o envenenamento opera como uma "arma silenciosa e eficaz". “Deve haver também notificação dos casos no Sinan para que possam ser identificados padrões, sazonalidade e tipos de substâncias tóxicas. Isso ajuda a nortear as políticas públicas voltadas para o tema”, afirmou.
Entre 2015 e 2024, o Sistema Único de Saúde (SUS) atendeu uma média de 28 internações por mês decorrentes desses atos propositais, somando 3.461 hospitalizações com permanência mínima de 24 horas na década. De modo geral, entre 2020 e 2024, o país viu 107 homicídios por envenenamento, com predomínio de vítimas masculinas (70% pretas ou pardas, e 42% na faixa de 21 a 40 anos), muitas vezes perpetrados por parentes próximos. No primeiro semestre de 2025, as intoxicações totais incluindo não criminosas atingiram 51,4 mil, com 296 mortes e 783 sequelas, afetando majoritariamente mulheres de 20 a 39 anos.
O Ministério da Saúde, consultado, esclareceu que iniciativas contra envenenamentos cabem primordialmente ao Ministério da Justiça. Em resposta oficial, este último destacou o Sistema de Alerta Rápido (SAR), ligado à Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, como ferramenta para notificação de riscos envolvendo substâncias, incluindo intoxicações exógenas. “O SAR está apto a receber e a alertar órgãos que possam responder de imediato em caso de aumento expressivo de casos ou ameaça à segurança e saúde”, diz a nota. Em outubro, o governo federal adquiriu 150 mil doses de antídotos como fomepizol para combater surtos como o de metanol, distribuindo lotes iniciais a estados afetados.
Casos que chocaram o país em 2025
Diversos episódios ganharam destaque midiático, ilustrando a sofisticação e o planejamento por trás desses crimes. O mais recente envolve a estudante de Direito Ana Paula Veloso Fernandes, de 36 anos, detida em outubro pela Polícia Civil de São Paulo e classificada pela Justiça como "verdadeira serial killer". Apontada como autora de pelo menos quatro homicídios por envenenamento entre janeiro e maio, em Guarulhos (SP), São Paulo e Duque de Caxias (RJ), ela usou métodos insidiosos para aproximar-se das vítimas sob pretextos falsos, como apps de namoro ou promessas de ajuda.
Entre os alvos: Hayder Mhazres, tunisiano de 21 anos, morto em maio após rejeitar uma gravidez simulada por Ana Paula ela o envenenou via milkshake; Maria Aparecida Rodrigues, falecida em abril após café na casa da suspeita, com quem se conectou romanticamente; e Neil Corrêa da Silva, de 65 anos, assassinado em abril com feijoada envenenada a mando da própria filha, Michele Paiva da Silva, por R$ 4 mil. No caso de Maria Aparecida, Ana Paula tentou culpar um ex-namorado policial militar casado, forjando bilhetes e um bolo contaminado para simular uma trama de incriminação. “O objetivo dela, neste caso, não era que fosse feito um boletim de ocorrência de morte natural, mas, sim, de morte suspeita”, explica o delegado Halisson Ideião. O Núcleo de Análise Comportamental do DHPP descreve seu perfil como alguém que "tem prazer em matar, motivação pouco importa", e investiga possíveis vítimas adicionais.
Em janeiro, em Parnaíba (PI), uma ceia de Réveillon com baião de dois adulterado por terbufós agrotóxico similar ao chumbinho intoxicou nove membros de uma família, matando seis, incluindo crianças de 1 ano e 8 meses (Igno Davi da Silva) e 3 anos (Lauane da Silva). O casal Francisco de Assis Pereira da Costa e Maria dos Aflitos, padrasto e mãe das vítimas, foi preso por oito homicídios e três tentativas qualificados; algumas vítimas eram filhos ou netos dela, e outra, uma vizinha. A família já havia sofrido perdas semelhantes meses antes, com duas crianças mortas por sintomas compatíveis.
Março trouxe o drama em Ribeirão Preto (SP), onde a professora de pilates Larissa Rodrigues, 30 anos, sucumbiu após meses de envenenamento lento com chumbinho na sopa, orquestrado pelo marido, o médico Luiz Antônio Garnica, e pela sogra Elizabete Arrabaça. Motivos incluíam traição descoberta e medo de divisão de bens no divórcio; eles também são suspeitos de matar Nathalia Garnica, irmã do médico, em fevereiro, via exumação pendente. Mãe e filho estão presos desde maio por feminicídio triplamente qualificado: "por motivo torpe, meio cruel e recurso que impossibilitou a defesa da vítima".
Em abril, Imperatriz (MA) viu a tragédia de dois irmãos, Luís Fernando Rocha Silva (7 anos) e Evelyn Fernanda Rocha Silva (13), mortos por ovo de Páscoa com chumbinho, enviado por motoboy com bilhete "Com amor, para Mírian Lira. Feliz Páscoa". A mãe, Mírian Lira Rocha, sobreviveu após internação grave. A culpada, Jordélia Pereira Barbosa, 35 anos, ex do companheiro de Mírian, agiu por ciúmes; presa, será julgada por júri em setembro.
No mesmo mês, em Natal (RN), a bebê Yohana Maitê Filgueira Costa, de 8 meses, faleceu ao ingerir açaí contaminado com chumbinho; sua prima de segundo grau, também intoxicada, se recuperou após UTI. Suspeitos ainda não identificados pela polícia.
Por fim, em junho, Itapecerica da Serra (SP), a adolescente Ana Luiza de Oliveira Neves, 17 anos, morreu ao consumir bolo de pote com arsênico, enviado por outra jovem da mesma idade por "raiva e ciúmes". A autora foi apreendida e encaminhada à Fundação Casa, com o inquérito em curso.
Esses eventos, somados a outros como o uso de arsênico em Torres (RS), onde três morreram em família, reforçam a urgência de uma política nacional unificada contra a "vulgarização" de venenos, como alerta o professor de Criminologia da USP, Mauricio Stegemann Dieter: "O acesso a venenos e pesticidas está 'vulgarizado'". Peritos como Guilherme Lima, forense, descrevem a perícia como "a última voz da vítima". O professor enfatiza a falta de centralidade regulatória, permitindo compras irregulares entre cidades ou importações via quadrilhas.
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