A legislação federal de 2023 sobre apostas online, conhecida como Lei das Bets, concede aos estados e ao Distrito Federal a permissão para gerenciar loterias e jogos de quota fixa, incluindo cassinos virtuais, mas impõe uma restrição clara: essas operações devem se limitar estritamente aos limites geográficos de cada unidade da federação. No entanto, testes realizados em São Paulo revelaram que seis sites autorizados pela Paraíba e pelo Rio de Janeiro permitem cadastros, depósitos e apostas de usuários localizados fora de seus territórios, configurando descumprimento direto do Artigo 35-A da Lei nº 14.790/2023. Esse dispositivo estabelece: "Os Estados e o Distrito Federal são autorizados a explorar, no âmbito de seus territórios, apenas as modalidades lotéricas previstas na legislação federal."
Especialistas em direito e regulação destacam os riscos dessa prática. Luiz César Loques, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Direito Rio e autor do livro "Direito e regulação das apostas no Brasil", alerta para as consequências econômicas e jurídicas. "O primeiro problema é a concorrência desleal e uma chamada guerra entre os estados, o que não é bem-vindo. Se um estado X não respeita o limite de geolocalização do estado Y, eu estou criando um incentivo para se desrespeitar a regra", explica. Ele complementa que as empresas envolvidas podem enfrentar infrações administrativas, além de violarem cláusulas contratuais, o que compromete a integridade do pacto federativo previsto na Constituição.
Em resposta às irregularidades apontadas, o governo da Paraíba, por meio da Loteria do Estado da Paraíba (Lotep), afirmou manter um sistema rigoroso de monitoramento. Francisco Petrônio de Oliveira Rolim, superintendente da Lotep, declarou em nota: "A Lotep mantém rotina permanente de acompanhamento e fiscalização por meio da Gerência Técnica e de Fiscalização (GTF) e do setor de Inteligência Estatal. Quando há conhecimento de qualquer indício de irregularidade, é instaurado procedimento de apuração para verificação dos fatos. Confirmada a ocorrência, a Lotep notifica o operador lotérico para adoção das medidas administrativas cabíveis, podendo o processo resultar em advertência, suspensão, aplicação de multas e/ou revogação da autorização, nos termos da legislação estadual aplicável." A entidade já arrecadou R$ 1,7 milhão com essas operações em 2025, destinando recursos a áreas como saúde, educação, esporte, assistência social e segurança pública.
Já o governo fluminense, responsável pela Loteria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj), não se manifestou até o fechamento desta reportagem, apesar de contatos formais. Essa ausência de posicionamento contrasta com ações recentes no estado, como a regulamentação de Video Lottery Terminals (VLTs) em agosto de 2025, que visam formalizar apostas em bares e estabelecimentos comerciais, com pagamentos via Pix e repasse de 5% da receita bruta ao governo estadual. A iniciativa, que promete gerar 65 mil empregos e combater fraudes, reforça a necessidade de controles geográficos rigorosos, mas não aborda diretamente as falhas em plataformas online.
A Secretaria de Prêmios e Apostas (SAP), vinculada ao Ministério da Fazenda, reforça que a responsabilidade pela conformidade recai sobre os entes federativos. "Cabe ao ente, que explora ou outorga este serviço, a garantia do cumprimento dessa regra na exploração da atividade. Contudo, uma vez identificada a exploração de forma ilegal, extrapolando os respectivos territórios, a SPA/MF notifica o ente responsável, para a tomada das devidas providências. Em casos de descumprimento reiterado, há a possibilidade de acionamento da Advocacia Geral da União, para que medidas judiciais sejam tomadas", informou a pasta. A SAP analisou os sites citados e confirmou que quatro plataformas de Paraná, Sergipe e Tocantins respeitam as normas, bloqueando cadastros e apostas externas, embora permitam acessos para saques.
Telma Rocha Lisowski, professora de Direito Constitucional e Direito Administrativo na Universidade Presbiteriana Mackenzie, enfatiza o papel dos estados na aplicação de sanções. "Os estados podem fazer suas leis e decretos do Executivo [para definir] como vão funcionar os serviços de apostas e podem ter as penalidades em caso de descumprimento por parte das empresas", afirma. Ela destaca que violações podem resultar em multas de até R$ 2 bilhões, suspensão de licenças ou revogação de autorizações, conforme o Artigo 25 da lei.
Os testes práticos, conduzidos com depósitos mínimos totalizando R$ 80 em valores entre R$ 2 e R$ 7, envolveram apostas em eventos como o Campeonato Italiano, a Taça do Paraguai e a Copa Libertadores da América. Desses, quatro sites paraibanos (de um total de 12 autorizados) e dois cariocas (de 33) permitiram transações completas, incluindo perfis e depósitos de R$ 10 ou R$ 20. Outros oito sites, de Rio de Janeiro (quatro), Paraná (dois), Sergipe (um) e Tocantins (um), foram acessíveis de São Paulo, mas bloquearam cadastros ao detectar a localização.
Estados como Sergipe e Paraná demonstram mecanismos eficazes de compliance. O governo sergipano, via Loteria do Estado de Sergipe (Lotese), informou: "Embora o site da Lotese possa ser acessado a partir de qualquer lugar do mundo, a Agrese esclarece que o exercício efetivo da aposta (registro da aposta, aceitação e liquidação) está tecnicamente restrito ao território do estado de Sergipe. Sistemas de autorização de transação impedem a efetivação de apostas quando a origem do jogo for identificada fora dos limites territoriais autorizados." Medidas incluem geolocalização por IP, detecção de VPNs, validação multifator e monitoramento antifraude, com sanções progressivas em caso de reincidência.
No Paraná, a Lottopar explica: "Os domínios dos sites ficam disponíveis em território nacional e internacional, mas não permitem cadastros e nem apostas de pessoas localizadas fora do território paranaense. Ou seja, o site pode ser acessado de qualquer lugar do planeta, mas somente são permitidas apostas feitas no Paraná." A entidade arrecadou cerca de R$ 60 milhões em outorgas desde 2024, com taxas de 6% sobre a receita bruta, destinadas a segurança pública e ações sociais. Descumprimentos geram notificações com prazo de 48 horas para correção, seguidas de ações judiciais.
Atualmente, cinco estados operam bets próprias: Rio de Janeiro, Paraíba, Paraná, Sergipe e Tocantins, totalizando 52 plataformas nacionais. Outros 17 possuem leis aprovadas para apostas online, com Amapá e Ceará atualizando normas pós-2023. Acre, Distrito Federal, Espírito Santo, Rio Grande do Sul e São Paulo debatem criações locais, mas São Paulo exclui bets de seus planos. No âmbito municipal, mais de 70 cidades aprovaram loterias, mas a SAP as considera irregulares, pois a lei reserva a exploração à União, estados e DF. O caso de Bodó (RN), que suspendeu sua bet após R$ 8 milhões em dez meses devido a disputas federais, ilustra os conflitos.
O Supremo Tribunal Federal (STF) já interveio em questões semelhantes, suspendendo em fevereiro de 2025 uma regra fluminense que permitia apostas interestaduais, por contrariar a Lei 13.756/2018 e fragilizar o controle territorial. O ministro André Mendonça argumentou que tal flexibilização cria "uma espécie de 'ficção jurídica' sobre os limites territoriais do estado", com prejuízos ao pacto federativo. A decisão, pendente de referendo plenário, reforça a urgência de uniformização, como propõe a Fazenda para evitar "guerra fiscal" entre entes.
Essa controvérsia expõe vulnerabilidades no nascente mercado regulado, que desde janeiro de 2025 exige licenças federais nacionais (R$ 30 milhões por cinco anos) ou estaduais (R$ 2-5 milhões). Com o setor projetando transparência e proteção ao consumidor incluindo proibições a menores e monitoramento de dependência, o descumprimento geográfico ameaça a credibilidade, incentivando sanções severas e possíveis ações judiciais da Advocacia-Geral da União em casos reincidentes.
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