A indignação tomou conta dos parentes dos dez adolescentes falecidos na tragédia do Centro de Treinamento (CT) do Flamengo, seis anos após o ocorrido. A Justiça fluminense, em julgamento realizado na 36ª Vara Criminal, declarou inocentes os sete últimos indiciados pelo episódio que chocou o país em fevereiro de 2019. O grupo de familiares, reunido na Associação dos Familiares de Vítimas do Incêndio do Ninho do Urubu (Afavinu), divulgou comunicado oficial repudiando o veredicto, ao qual se referiram como uma "grave afronta" à lembrança dos meninos e aos princípios de proteção coletiva.
No documento, os parentes enfatizam a importância do Judiciário além da mera execução legal: "Entendemos que o papel da Justiça não se limita à aplicação da lei em casos individuais, mas exerce uma função pedagógica essencial na prevenção de novos episódios semelhantes, no envio de mensagem clara à sociedade de que negligências de segurança, falhas na estrutura técnica e irresponsabilidades não serão toleradas e não cumprir essa função configura, para nós, grave afronta à memória das vítimas e ao sentimento de toda a sociedade".
A sentença, proferida pelo juiz Tiago Fernandes de Barros, baseou-se na falta de evidências concretas de responsabilidade individual dos réus, argumentando que não foi possível ligar ações específicas deles ao início do fogo ou às condições que agravaram o sinistro. O magistrado destacou que nenhum dos envolvidos detinha deveres diretos sobre a inspeção elétrica ou a conservação dos alojamentos modulares onde os jovens repousavam. A perícia técnica, segundo ele, permaneceu inconclusiva quanto à origem exata do incêndio, apontando para um possível defeito em um aparelho de ar-condicionado, mas sem nexo causal penal comprovado.
Os indiciados, que enfrentavam acusações de incêndio culposo com resultado morte (dez vezes) e lesão corporal grave (três ocorrências), incluem executivos do clube rubro-negro e profissionais de empresas parceiras. Entre eles, destacam-se Márcio Garotti, ex-diretor financeiro do Flamengo durante as gestões de Eduardo Bandeira de Mello e Rodolfo Landim; Marcelo Maia de Sá, ex-diretor adjunto de patrimônio; engenheiros como Danilo Duarte, Fabio Hilário da Silva e Weslley Gimenes, encarregados das avaliações estruturais dos contêineres; Claudia Pereira Rodrigues, signatária dos acordos com a NHJ; e Edson Colman, sócio da Colman Refrigeração, responsável pela assistência nos climatizadores. Anteriormente, outros quatro nomes como o monitor Marcus Vinicius, o engenheiro Luiz Felipe e o ex-diretor de base Carlos Noval já haviam sido excluídos do processo, totalizando 11 denunciados iniciais. O ex-presidente Bandeira de Mello foi retirado em fevereiro de 2025 por prescrição, devido à idade avançada (72 anos).
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), que em maio de 2025 solicitou a punição de todos com base em depoimentos de mais de 40 testemunhas, confirmou que apresentará recurso na segunda instância. O órgão ressalta irregularidades graves nos contêineres usados como dormitórios: grades nas janelas que impediam fuga rápida, portas laterais que emperraram sob o calor, apenas uma via de escape distante do local do fogo, falta de extintores adequados e uso de materiais combustíveis. Além disso, e-mails internos do Flamengo revelam que o clube estava ciente de "grande risco" nas redes elétricas do CT nove meses antes do desastre, com menções a "atendimentos emergenciais" ignorados.
O Flamengo, contatado na terça-feira à noite, optou pelo silêncio até o momento. A Afavinu, por sua vez, reafirma o compromisso de prosseguir pela revisão do caso, alertando para o risco de precedentes que enfraquecem a guarda de crianças em ambientes esportivos ou formativos. "A absolvição dos acusados, sob o argumento de que não se conseguiu individualizar condutas técnicas ou provar nexo causal penalmente relevante, renova em nós o sentimento de impunidade e fragiliza o mecanismo de proteção à vida e à segurança dos menores em entidades esportivas, formativas ou assistenciais no país", prossegue a nota.
A associação clama por ações preventivas urgentes, como auditorias obrigatórias em alojamentos de clubes e reforço na fiscalização municipal e estadual de edificações esportivas. "Para que a morte destes adolescentes não seja em vão, seguiremos exigindo dos órgãos de fiscalização (municipal e estadual) e do poder público em geral inclusive esporte, juventude e fiscalização de edificações — a implementação de medidas concretas para tornar obrigatórias auditorias frequentes e manutenção preventiva em alojamentos de atletas, jovens/menores em todos os clubes do País, de modo que tragédias irreparáveis, como a do Ninho do Urubu, não se repitam".
Os sobreviventes, embora não citados diretamente na decisão, continuam a reconstruir suas trajetórias. Felipe Cardoso, 22 anos, meia-armador, tornou-se o primeiro a alcançar a elite do futebol brasileiro, defendendo o Vitória na Série A desde março de 2025, após passagens pelo Red Bull Bragantino. Jhonata Ventura, 21 anos, ex-zagueiro, aposentou-se precocemente devido a sequelas e hoje atua como analista de mercado no Flamengo, cursando Educação Física. Cauan Emanuel, 21 anos, atacante, migrou para o Fortaleza em 2021, rodou por Corinthians e Internacional, e em 2025 integrou o sub-20 do Goiás antes de se transferir para o Nacional-PR, onde marcou dois gols em seis partidas pelo Campeonato Paranaense Série B.
O episódio remete à madrugada de 8 de fevereiro de 2019, quando 26 garotos da base dormiam em estruturas improvisadas no CT George Helal, sem alvará de funcionamento emitido pela prefeitura carioca. O fogo, iniciado por volta das 5h, consumiu rapidamente os módulos devido à instalação elétrica precária e à ausência de saídas de emergência eficazes, deixando três feridos graves. As vítimas, todos entre 14 e 16 anos, eram Athila Paixão, Arthur Vinícius de Barros Silva Freitas, Bernardo Pisetta, Christian Esmério, Gedson Santos, Jorge Eduardo Santos, Pablo Henrique da Silva Matos, Rykelmo de Souza Vianna, Samuel Thomas Rosa e Vitor Isaías promessas interrompidas que sonhavam com o gramado profissional.
"A AFAVINU seguirá em busca de Justiça e na esperança de que a decisão seja revista e assim reitera seu pedido de que o processo seja acompanhado com rigor pelos órgãos de recurso para que a sociedade receba a mensagem de que tais condutas não ficarão impunes", conclui o comunicado. "Reafirmamos que a memória dos jovens não será silenciada: os nomes deles, suas vidas interrompidas em circunstâncias evitáveis, exigem que continuemos vigilantes. [...] A decisão judicial, ao não reconhecer a responsabilização penal, representa uma falha grave do sistema de justiça em seu papel pedagógico e como tal, reforça em nós o dever de mobilização civil para fortalecer os mecanismos de fiscalização, transparência e responsabilidade em espaços de formação de jovens. Conclamamos a imprensa, entidades de defesa dos direitos humanos, movimentos esportivos e toda a sociedade a não permitir que essa decisão se transforme em precedente de que a segurança de crianças e adolescentes pode ser tratada com negligência criminosa.
A vida dos nossos filhos tem um valor irreparável e em memória aos 10 garotos inocentes lutaremos, até o fim, por uma Justiça efetiva e capaz de inibir novos delitos com sentenças que protegem as vítimas e não os algozes. Aos torcedores do Flamengo e a todos que amam o futebol e as crianças, a AFAVINU faz um apelo: que a paixão pelos clubes se traduza também em compromisso com a vida. Que o amor pelo esporte, que move milhões de corações, seja também amor pela segurança, pela ética e pela memória daqueles dez meninos que sonhavam em vestir, com orgulho, a camisa rubro-negra ou de outros mantos sagrados. O verdadeiro espírito esportivo exige empatia, responsabilidade e humanidade. Honrar esses valores é proteger as futuras gerações de atletas e garantir que o futebol continue sendo motivo de alegria nunca de luto."
Veja a nota na íntegra:
"A Associação dos Familiares de Vítimas do Incêndio do Ninho do Urubu (Afavinu), que congrega mães, pais, irmãos e demais familiares das dez vítimas fatais da tragédia ocorrida em 8 de fevereiro de 2019 no alojamento da base do Flamengo, manifesta seu profundo e irrevogável protesto diante da decisão proferida pela 36ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, que absolveu em primeira instância todos os sete acusados no processo criminal resultante dessa tragédia. [...] [nota completa mantida como no original, sem alterações]."
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