A chegada de Michelle Bolsonaro a Fortaleza no domingo (30/11) visava barrar uma possível união do PL com Ciro Gomes, agora no PSDB, na corrida pelo governo do Ceará contra Elmano de Freitas (PT). O que surpreendeu, em um ato acompanhado pela BBC News Brasil, foram as críticas explícitas da ex-primeira-dama a figuras chave do partido, como o presidente nacional Valdemar da Costa Neto e o deputado federal André Fernandes, líder do PL no estado. Essa postura gerou um racha imediato com os filhos do ex-presidente Jair Bolsonaro e a cúpula da legenda.
Como presidente do PL Mulher, Michelle viajou ao Ceará para endossar a pré-candidatura ao governo do senador Eduardo Girão (Novo), parceiro dela na defesa da vida e opositor ferrenho ao aborto. Oito dias depois da prisão de Jair Bolsonaro em uma cela da Polícia Federal, ela foi ovacionada como atração principal do encontro, assumindo o papel de voz do esposo. Posicionada diante de um totem exibindo a foto dele com a boca selada e o lema "FALEM POR MIM", Michelle usou o microfone para questionar Valdemar e enaltecer sua gestão à frente da ala feminina da sigla.
Desde março de 2023, quando assumiu o cargo, ela tem percorrido o Brasil em jato fretado pelo partido, impulsionando eventos que atraíram 51 mil novas afiliadas ao PL um salto de 15%, contra apenas 2,5% nos demais partidos no mesmo intervalo. "Se o meu presidente [do PL, Valdemar Costa Neto] apoia outro candidato, é ele, ele não me representa, ele não fala por mim, eu sou presidente [do PL Mulher], tenho autonomia do meu movimento feminino que se tornou o maior da história", declarou ela no ato de Girão.
Em seguida, Michelle evocou os repetidos embates de Ciro contra o marido, incluindo a comemoração dele pela inelegibilidade de Bolsonaro, decidida pelo TSE após denúncia do PDT, antigo partido do ex-governador. "É sobre isso. É sobre essa aliança que vocês se precipitaram em fazer", prosseguiu, mirando diretamente André Fernandes, presidente estadual do PL. O deputado, tido como "máquina de votos" no Ceará após quase vencer o PT na prefeitura de Fortaleza em 2024 com 49,63% no segundo turno (contra 50,37% de Evandro Leitão), contrastava com o fraco 1% de Girão na mesma eleição municipal.
Flávio Bolsonaro (PL-RJ) revelou que Fernandes contava com o aval do pai para as tratativas com Ciro — fato desconhecido por Michelle, segundo ela. Apesar de defender o acordo, Fernandes compareceu ao evento de Girão, mas não recebeu aplausos ou sorrisos da ex-primeira-dama, ao contrário de outros presentes. Ela então o convocou publicamente para uma foto coletiva em apoio a Girão, instigando a plateia conservadora a monitorar os deputados em 2026. "Como eleitores, nós iremos fiscalizar os nossos parlamentares, se, em 2026, eles derem um voto contrário [a Girão], ok? Todos que estão aqui estão fechados com Girão. Todo mundo pra frente [para fazer a foto]. André [Fernandes], fica aqui do lado do Girão", chamou Michelle.
O pronunciamento incluiu referências bíblicas e elogios ao voto feminino. "Nós somos a força delicada que vai transformar o mundo, sabe por quê? Porque Deus deu o melhor dom para nós, o de gerar", afirmou, tocando a barriga. "E quando a gente gera, a gente educa, a gente dá direcionamento." "Estou exortando vocês, mulheres, porque nós somos maioria, e nós definimos uma eleição", acrescentou.
No dia seguinte, Flávio Bolsonaro classificou a intervenção de Michelle como "constrangedora" ao portal Metrópoles. "A Michelle atropelou o próprio presidente Bolsonaro, que havia autorizado o movimento do deputado André Fernandes no Ceará. E a forma com que ela se dirigiu a ele, que talvez seja nossa maior liderança local, foi autoritária e constrangedora", disparou.
Eduardo Bolsonaro endossou o irmão nas redes: "Meu irmão Flávio Bolsonaro está correto. Foi injusto e desrespeitoso com o André Fernandes o que foi feito no evento [em que Michelle criticou o parlamentar]". "Não vou entrar no mérito de ser um bom ou mau acordo, foi uma posição definida pelo meu pai. André não poderia ser criticado por obedecer o lider", completou. Carlos Bolsonaro também se alinhou aos irmãos, ampliando o mal-estar familiar.
Na terça (2/12), após visitas ao marido na prisão, Flávio anunciou trocas de desculpas com Michelle e uma reunião do PL para decisões coletivas. A aliança com Ciro foi pausada, conforme nota oficial da sigla, que suspendeu diálogos com o PSDB no Ceará para reavaliação estratégica. André Fernandes atribuiu o impasse a um "ruído de comunicação interna" e confirmou a paralisação: "Faremos essa composição em conjunto […] Ao que tudo indica, pelo momento, nós vamos dar uma pausa, vamos repensar um futuro melhor para o estado do Ceará e eu agradeço a confiança em continuar à frente nessa articulação". Flávio minimizou: "(Houve) um ruído na nossa comunicação interna, já que as tratativas sobre todos os Estados do Brasil já vêm acontecendo, mas veio a público de forma muito prematura no Ceará". "Daqui para a frente, vamos fazer como sempre deveria ser: conversas internas, respeito às lideranças regionais e definição estratégica alinhada. Não vai acontecer novamente", prometeu.
Michelle reforçou a reconciliação no Instagram, com 7,7 milhões de seguidores, postando imagens ao lado de Flávio, Valdemar, Fernandes e um pôster de Jair: "Com oração, conversa sincera e união, o Brasil tem solução!". Nos corredores do PL, no entanto, críticos à ex-primeira-dama veem o episódio como golpe fatal em sua viabilidade para vice em uma chapa com Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), que ainda não confirmou candidatura presidencial. "A Michelle não tem quilometragem política. Acabou o tamanho nacional dela. Ela foi redimensionada ao DF", confidenciou uma fonte da legenda, aludindo a uma vaga no Senado pelo Distrito Federal.
No ato de Girão, o ex-procurador Deltan Dallagnol (Novo) a saudou como "presidenciável", ao lado de Romeu Zema (Novo-MG), arrancando aplausos. "Temos [aqui] os nossos presidenciáveis, [o governador de Minas, Romeu] Zema, Michelle Bolsonaro", afirmou. Ela rebateu, off-microfone, que seria primeira-dama de novo, insistindo na candidatura do marido apesar da inelegibilidade. "Presidenciável para nós, talvez não pra você", brincou Dallagnol.
Gráfico em formato de organograma mostra possíveis herdeiros do bolsonarimo: Tarcísio de Freitas, Michelle Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, Carlos Bolsonaro, Jair Renan, e Flávio Bolsonaro.Pesquisa AtlasIntel/Bloomberg de terça (2/12) coloca Michelle e Tarcísio empatados tecnicamente com Lula, dentro da margem de 1 ponto percentual. Em hipotético segundo turno, Lula teria 49% contra 47% dela empate similar com Tarcísio. O levantamento ouviu 5.510 pessoas online, de 22 a 27 de novembro. Outros nomes da direita incluem Flávio, Zema e Ronaldo Caiado (União Brasil-GO).
Para Creomar de Souza, professor de ciência política na Fundação Dom Cabral, domar Michelle será desafio para o PL. Sem experiência eletiva, ela ergueu rede própria no conservadorismo religioso e feminino nos últimos anos. Um marco de independência foi o apoio a Damares Alves (Republicanos) para o Senado em 2022, contra Flávia Arruda (PL), que perdeu. Damares virou aliada chave. "E, ao longo desse período do Bolsonaro fora da presidência, foi dado a ela o comando do PL Mulher, que virou um sucesso em termos de filiações, de acometimento desse público feminino, que tem na Michelle uma referência. E aí tem um elemento que torna muito difícil essa tentativa de enquadramento", analisa Souza.
A turbulência no Ceará ilumina uma querela familiar anterior à prisão domiciliar de Jair em agosto e à condenação por golpe em setembro, quando Michelle ganhou holofote nas tramas para 2026, irritando filhos e caciques do PL. O alvo central é o Senado, com duas vagas por estado crucial para o bolsonarismo, pois senadores podem derrubar ministros do STF, como Alexandre de Moraes, que sentenciou Jair a mais de 27 anos.
Michelle prioriza mulheres conservadoras alinhadas a bandeiras antiaborto e pró-impeachment de Moraes. Suas apostas colidem com planos do PL em estados chave e com a ambição de Carlos Bolsonaro (PL-RJ) pelo Senado em Santa Catarina, estado bolsonarista forte, frustrando a deputada Carolina de Toni (PL-SC), sua apoiadora. Michelle prometeu bancar Toni mesmo se ela migrar de partido, contrariando Valdemar, que busca pacto com o PP para reeleger Jorginho Melo (PL) e eleger Esperidião Amin (PP) ao lado de Carlos.
No Distrito Federal, ela surpreendeu ao endossar Bia Kicis (PL) para o Senado em novembro, apesar de si mesma ser favorita em pesquisas para a vaga opção se a via presidencial azedar. Inicialmente, esperava-se chapa com Ibaneis Rocha (MDB) e Celina Leão (PP) para o governo local.
No Ceará, o atrito envolve o Senado: Fernandes planejava lançar o pai, Alcides Fernandes (PL), via aliança com Ciro. Michelle, porém, banca Priscila Costa (PL), vereadora recordista em Fortaleza e vice do PL Mulher, com retórica religiosa similar à dela.
Em São Paulo, ela impulsiona Rosana Valle (PL-SP), presidente estadual do PL Mulher, para o Senado. Concorrentes incluem Ricardo Salles (Novo-SP) e Guilherme Derrite (PP-SP), ex-secretário de Segurança.
A crise, deflagrada por Michelle, fortaleceu sua posição, segundo fontes da CNN: ela não veta acordo via Fernandes, mas cobra de Ciro "gestos explícitos" pró-Bolsonaro, como retratação. A reunião de emergência incluiu Valdemar, Flávio, Rogério Marinho (PL-RN) e Fernandes, resultando na suspensão das tratativas. Flávio, após visitar o pai na PF, confirmou o acerto: "Eu conversei longamente com a Michelle ontem. Nós nos resolvemos e expliquei a ela que não havia nenhuma decisão tomada sobre palanques, nem no Ceará nem em nenhum outro estado". Ele atribuiu o episódio a um "ruído" sanado, com decisões futuras alinhadas ao clã. Michelle, em nota nas redes, respeitou as visões dos enteados, mas defendeu sua liberdade: "Respeito a opinião dos filhos de Bolsonaro, mas reforço que penso diferente e tenho o direito de expressar meus pensamentos com liberdade e sinceridade".
Analistas como Beatriz de Souza, em live no YouTube, veem o movimento de Michelle como resgate do discurso antisistema bolsonarista: "Não tem um nome forte o suficiente para brigar com o PT no Ceará como o Ciro. Se o PL buscar outra opção, entra enfraquecido na disputa. Por outro lado, o movimento da Michelle aproxima o partido do discurso antisistema do Bolsonaro". No X (antigo Twitter), aliados circulam vídeos de Ciro atacando Jair, reforçando a oposição à aliança. O PL Mulher, sob Michelle, segue como trunfo: em 2025, o custo mensal de R$ 860 mil para eventos e filiações rendeu crescimento exponencial, mas atrai críticas internas, como de Mauro Cid, que, segundo relatos, prefere Lula a ela em sondagens privadas. A legenda agora busca "uma solução consensual" para o Ceará, com Fernandes à frente, mas o episódio expõe fissuras no bolsonarismo pós-prisão de Jair.
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